Sunday, August 26, 2007

O menino da lágrima

Mas o que aconteceu?
Estás a chorar porque te disseram que és feio?
Essa tua cara de canastrão que me recorda vagamente os meus hexa-avós…
Fizeram-te um penteado que não querias?
Que te deixa envergonhado, enxovalhado pelos teus amigos enquanto jogam ao pião.
Ou então são esses teus dentes, oh meu deus, dentes podres que tão cruelmente cedo perderam a alvura do leite, anos e anos de sofrimento antes de a recuperar, sessões atrozes de tratamentos precários,
fizeste um pacto com o diabo, não foi?
Entrou-te o fumo para os olhos, fumam cachimbo ao pé de ti.
És mais desgraçado que a menina dos fósforos, essa ao menos engasgava-se de si própria, toda ela saliva e lascas de madeira.
E a menina dos teus olhos, completamente perdida de vista…
A porta dela à tua frente, a janela de onde, tua, a guardas.
O teu primeiro amor será amanhã casado e com filhos de alguém que não tu, e tu sempre gostarás dela.
Perderás a virgindade com uma camponesa roliça,
e com o cheiro embriagador e selvagem de uma morena que não se lava durante o período menstrual,
que apregoa monossílabos guturais
(os melhores rebuçados de mel do mercado
não tirarão o sabor a derrota…)

O avanço implacável do cavalo-de-ferro…
Pradarias inteiras queimadas, manadas e manadas de búfalo dizimadas, séculos de civilização deitados ao lixo
Ou então os sapatos apertam-te os pés,
esses pés chatos que mais tarde te atormentarão ao sol nos infindáveis exercícios militares.
Dos teus sapatos ao nó da gravata sobe uma linha monocroma e coerente que te sufoca o peito.
Cega-te os olhos o reflexo da tua risca diagonal no cabelo loiro
pois em todas as salas há um espelho à tua frente.

E lá fora brilha o sol, irmão.
O fumo há longo tempo dispersou.
Porque brilham também os teus olhos?
(É natural que brilhem, marulhadinhos como estão…)

Talvez até estejas a sorrir por dentro até às orelhas,
profundamente melancólico por teres descoberto há cinco minutos atrás que a esmagadora maioria da população mundial desconhece que existe algures um sítio chamado Alentejo
perdido no charco da existência pura.

Mas não é bom poder atirar os problemas para a frente?
É mais cómodo e provoca menos dores no peito e no estômago.
Só se pode mudar de vida uma vez, é melhor poupá-la,
conserva-te, mantém esse exagero mórbido dos apetites.
Porque depois de pedir para perder, esgotar a paciência, deitar e morrer,
eu posso até estar cansado de estar cansado, mas não consigo deixar de me cansar, e nessa altura
já nem tento evitar o que quer que seja.
O que poderias fazer com o teu corpo…
Se ao teu corpo presidisse uma vontade com autonomia para o usar dessa maneira.
Mas tudo o que tu fazes é chorar.

Alegra-te, vá lá…
Tu vais pegar em espingardas, trocar de meias num pântano cheio de crocodilos no coração de África.
Antevejo uma existência fantástica, uma ponta do iceberg e uma ponta de remorsos.
Podes ser tudo, ou nada, ou qualquer coisa,
e deixaste uma carranca na parede da sala de toda a gente, entraste como quem não quer nada, para depois te transformares num toque de clarim, a bradar “este é o caminho!”
Tocaste o meu coração dezasseis vezes.
Dos buracos desse coração as golfadas de sangue que não me deixam respirar.
Haveria o teu estúpido retrato de devolver-me a vontade de viver?
Ou preferirei engasgar-me no sangue do meu coração partido?

As tuas palavras seriam o melhor presente que poderia receber.
As lágrimas escorregam pelo nó do meu laço, e por aí abaixo até à flor na minha lapela, perante a tua visão paradisíaca.
Menino da lágrima, como é possível a tua beleza?
(é com certeza uma questão que não veremos respondida na “Gaia Ciência” de Nietzsche, essa e
“haverá psico-trópicos e poesia hoje à noite?”, ou ainda

“haverá alguém suficientemente onanista para não se masturbar?”)
O teu choro compulsivo causa-me pensamentos perversos,
sem custo o demonstraria de forma bastante clara.
É impossível que eu não me repita…
Já que uma só ideia me ocupa a cabeça e o tempo:
- temos todos borboletas no estômago
(e com “borboletas” refiro-me à arma branca, borboletas cobertas de subtis / fortes manchas vermelhas nas asas).

Blague dans le coin, espero encontrar-te nos meus sonhos como fogo de destilaria, a queimar-me o sono e a cama,
fogo fátuo a reflectir a realidade, entidade trágico-cómica.
Eu, puta e má.
Tu, pobre e mentecapto.

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