Monday, April 30, 2007

Ninguém escreve nada. Não consigo dormir, deve ser por isso que sou o único aqui. Deve ser por isso que não vejo com clareza. Que me exprimo apenas através de auto-comiseração e sonhos falhados (não é, Huck?). Pois deve haver, quase de certeza, uma explicação. Então, porque não o facto de não conseguir dormir? É fácil e fica bem. Tira o apetite, causa dores de cabeça, afecta a concentração, etc, etc... E é bom escrevê-lo aqui porque me sinto num salão vazio. Ninguém há-de ler. É como as cidades-fantasma dos livros do Lucky Luke, ficaram desertas depois de fecharem o casino. É como um diário. É como gritar bem alto do cimo de uma montanha. É como escrevê-lo no tronco de uma árvore bem no meio de uma mata cerrada (sim, sim, sou um pervertido). É como confessá-lo a deus, num murmúrio, na escuridão do quarto. É como confessá-lo precisamente àquele que considerámos o nosso pior inimigo (deus, porque não?), num acto de loucura ou desespero, ou então pensando tirar alguma vantagem em passarmos-lhe um trunfo deste calibre. É como assinar a primeira revista pornográfica que nos vem parar às mãos. É como despejar uma garrafa de gin na banca, na boca ou na sanita. É como vomitar e limpar tudo para ninguém reparar. É como cuspir na cara de uma rapariga bonita. Mas isso até me agrada, já que os vossos textos não merecem figurar ao lado dos meus. E, mais importante do que isso, não conheço uma alma que os mereça ler. Apesar de tudo, não me sinto nada mais leve. Nem vai ser desta que eu vou conseguir dormir.

Sunday, April 1, 2007

Encontro às vezes um homem no café a que costumo ir,
um bocado afastado da minha casa
este homem, dantes, quando eu era pequeno,
ia a um outro café mais perto de minha casa
que era onde iam os assalariados da minha terra
(ao sábado à noite, principalmente)
e muitas vezes, bebia cerveja e jogava sueca com o meu pai
lembro-me que ele tinha uma filha mais ou menos da minha idade
não muito bonita, mas rechonchudinha
com o cabelo ruivo, liso, longo, impecável, e sem sardas
e creio, até, que foi a partir daí que comecei a gostar de raparigas rechonchudas e/ou ruivas
não tenho a certeza, mas acho que ele trabalha na construção civil
este homem, vejam bem, não mudou nada
baixinho, calças de ganga puídas e camisa xadrez ou às riscas
sempre com a mesma idade, uma conversa aqui e ali sobre futebol ou mulheres ou costumes
de resto, o olhar fixo no ecrâ de televisão
como se fosse o único a seguir o filme
feições belas de indefiníveis, pele trigueira e gasta, cabelo castanho claro não muito nem pouco oleoso, não muito nem pouco comprido
e a barba de quem não tem aspirações para o fim-de-semana,
quando ele ia ao outro café, lembro-me bem, fumava SG Gigante
pedia sempre à filha que fosse comprar, para não ter de tirar as mãos das cartas
eu teria, nessa altura, dez anos, ou por volta disso...
não sei porque é que ele deixou de ir àquele café e passou a ir a outro
talvez tenha mudado de casa, talvez encontre os amigos dele noutro lado.
o meu pai também deixou de ir àquele café...
adoro encontrá-lo, agora,
tanta coisa mudou, mas ele não
e eu acho que ele tem qualquer coisa de especial
porque sou eu que escrevo sobre ele, não o contrário.